Casa da Covilhã
Fermentões, Guimarães, 1976
De há muito que nos conhecíamos…
Eu sabia algo da sua alma e do seu corpo. Sabia-a iniciada por João, o mestre-escola e embaixador que morreu de saudade e de tristeza, enriquecida por Francisca que nascera na Baía, nobilitada pelo descendente de Bernardo, o secretário do infante que não chegou a morrer em Alcácer, renascida pelos dobrões que Luís António trouxera de S. João de Rei, despertada pelas iras de outro António, o cónego miguelista que saiu vencido, conservada pelo austero Adelino e tão amada por José.
Eu sabia-a forte e segura, nas suas espessas paredes de granito ou nas suas armações de castanho, mas descobrira-lhe já algumas cicatrizes, fruto de sucessivos crescimentos ou de agravos do tempo que, também a ela, não soube perdoar.
Eu amava a sua pobre riqueza, a sua carreira, o seu portão com seu mouro, o seu terreiro, o seu jardim que outrora fora de buxo, algumas das suas fontes sem água, a sua velha nogueira, a beleza das suas camélias de Fevereiro.
De há muito que nos conhecíamos…
Mas só comecei a conhecê-la melhor quando, juntos iniciamos o romance da sua - e nossa - transformação. Havia que tocar-lhe e tocar-lhe foi um acto de amor, longo e lento, persistente e cauteloso, com dúvidas e certezas, foi um processo sinuoso e flexível e não um projecto de estirador, foi um método de homem apaixonado e não de frio tecnocrata, foi um desenho de gesto mais do que um desenho no papel.
Foram, assim, dez anos de muito longos gestos e de algum pouco papel, dez anos fixando e decidindo com cautela as transformações que ambos - ela e eu - íamos amorosamente aceitando.
Assim cruzamos as nossas vidas: hoje ela lá está prosseguindo no seu espaço e no seu tempo e o seu desenho aí está escrevendo e recordando a história do nosso romance.
De há muito que nos conhecíamos. Porém agora conhecemo-nos melhor e ambos estamos diferentes.
Fernando Távora, Porto, 1990